9.8.09

Mais um gim, por favor.

Era sábado de madrugada. Uma madrugada iniciando-se fria e chuvosa, contrastando com o clima quente da cidade. Mas era Agosto e, nesse mês, o avesso chega ao direito, naturalmente. Um gim, puro, com gelo e limão. Era necessário algo cítrico, forte, e, mais do que nunca, puro descendo goela abaixo. Precisava do álcool para tentar engolir a madrugada que não era quente e inibia a poesia, o sorriso sem graça e a idiota da mesa na frente gritando desnecessariamente “gim é perfume”, em goles rápidos e ácidos. Perfume, na verdade, era ela: um cheiro agradável por fora, mas no fundo, só servia para disfarçar o fedor da essência.

As palavras estavam vagando em minha cabeça, se debatendo, aglutinando-se em parágrafos, na busca insana de tentar descrever aquele episódio patético, a incompatibilidade de harmonias. Era um barulho quase ensurdecedor dentro de mim e bastante silencioso por fora. Segundo gim. Ninguém ia embora, o cenário não mudava, as cores iam desfalecendo. Numa tentativa desesperada de uma péssima atriz, mudei de texto, rasguei metade da roupa; a cena, agora, tratava-se de algo mais cru, diálogos mais incisivos, quase cortantes, disfarçados por uma posição geográfica pequena, de iluminação péssima. Mesas repletas de gentes do mesmo tipo, variadas gerações – a hora em que se percebe que o tempo deixa uma coisa chamada idade no colo da gente – envolvidos por um fio sem rumo. Terceiro gim, uma dose mais alta, tentar criar, recriar, tentar rejuntar idéias desconexas, desaparecidas, despercebidas. Percepções alteradas, a fala mais solta, a pele em chamas, entendeu o perigo? O cigarro salvando mãos paradas e jogando, a tragos, nicotina para o corpo, só para acordar, só para desentender o entendido, só pra desanuviar, só para nada. O sentido ali não importava, se houvesse iria, sabe-se lá o que iria. Outras poesias se formando, outras vontades indo e vindo, inclusive aquela de voltar ao tempo-amor e adentrar na tua alma em forma de beijo, no entanto, ela passava quando a realidade abria uma nova garrafa de cerveja e despejava o conteúdo no meu copo reserva, no teu copo viajante, nos vários copos das várias pessoas das várias mesas, e tudo isso ia pintando a madrugada fria, mas não mais chuvosa. Quarto gim, sem contar os copos tantos de cerveja, uma forma de competir, inconscientemente, com o nível alcoólico da noite, desagrupar conceitos, reavaliar concepções, desinibir as almas alheias. O perigo aumentava, as palavras estavam se organizando em fila na minha memória, juntas iam sair como a fumaça do meu cigarro, a minha indiferença à tua tentativa de ser igual, tua pequenez, mas ainda era cedo, mal passava das três. Teu desespero era imenso diante do meu sorriso, a minha presença quebrava teus argumentos. Um quinto gim e um brinde a minha autenticidade que tanto te assusta, um brinde a cidade que promove encontros, um brinde a toda e qualquer falta de senso, ou a qualquer um que não seja o teu.

Já passou das quatro e eu já estou bêbada demais e cheia dessa tua loucura que não move e sim atrapalha, deixa um nó na garganta. Álcool à parte e a deliciosa certeza de saber que eu não sou você, nem por um segundo.

Hora de ir para casa.

10 comentários:

Analista de sua própria vida disse...

Interessante a história. Texto de caráter existencial. Quanto a forma está excelente, mas tem algum elemento, que ainda não consigo identificar. Sei lá, deve ser neurose.

Jaya Magalhães disse...

Lembrei, não sei porque, da música de André:

"Se eu me embebedar de você, que porre vai me curar? Deixa eu te beber, te beber..."

E eu cheguei vendo a fumaça do cigarro como puros suspiros de poesia.

Você me deixa alcoolizada com essas letras, moça.

E eu gosto de você, azul.

Fernanda Pereira Carneiro disse...

"Álcool à parte e a deliciosa certeza de saber que eu não sou você, nem por um segundo".

Fica aqui o desejo de ser como vc, por vários deles...

Amo tu, flor...tu arrasa!ahuahuahua

André disse...

.. foi no quinto gim que o telefone tocou.

Filipe Garcia disse...

Ah, Clara, não tem poesia sua que não me dá a sensação de beleza. Você consegue alcançar assim? Suas palavras se agrupando de forma que a alma diz ávida: "entra aqui, agora."

Beijo, Clara.

Anônimo disse...

tem coisa minha pra ti lá no mim..
volto pra ler. :*

Marguerita disse...

Fiquei bêbada só de ler!
Estas noites errantes...

Bjo, Clara!
;*

disse...

Ainda bem que sempre existe uma casa pra gente voltar...

Bjo

d disse...

Existe sempre uma casa pra retornar, mas engraado, eu prefiro beber todas os goles cmo quem procura a vida em algum desses devaneios que vem com o alcool...

Fleur Anonyme disse...

Moça,
Era sábado. "Madrugada chegou, o sereno caiu", e não falamos sobre o meu amor, nem sobre o cansaço dele, falamos apenas dos sorrisos falsos, das mãos incertas, das palavras hostis, dos copos de bebidas, do frio. Não falamos sequer da poesia, porque não cabia falar dela, não cabia dentro do teu copo de gim uma gota sequer de poesia, mas já sabíamos de cor e salteado do desenrolar do tempo até a hora de ir embora, sobre isso era realmente desnecessário falar. Sabíamos, inclusive, o que tu querias, o que eu queria, que porventura não convergia com a tua vontade, sabiamos que nem a madrugada queria que amanhecesse o dia, mas o dia sempre amanhece, isso é algo inevitável.

É sempre muito bom uma dose de episódios patéticos para acostumar a goela, descendo tão macio quanto um gole de gim, ou de perfume -- embora eu nunca tenha provado este segundo --, e enebriando, acima de tudo, aos mais patéticos da situação. Porém, moça, não aconselho misturar essas doses de situações patéticas e bebidas alcoólicas no palco, exceto que se tenha bastante experiência com isso. Do contrário, o ator corre o risco de esquecer a fala, tropeçar nas palavras, e fazer de sua própria cena um desastre, um sufoco, uma agonia - alguns transformam-na em comédia, esses são os bem aventurados. Mas nada que a pouca iluminação e o barulho da platéia não disfarce. É sempre necessário conhecer as diferentes técnicas de abandonar o palco sem parecer ser principiante. Abandonado o palco, é sempre bom agradecer aos aplausos, pois sempre há aplausos, por pior que seja a atuação, o nosso público consegue ser melhor que o ator, fingindo ter gostado do espetáculo.

Sobre as almas, moça, deixe-me te dizer: é impossível adentrar a alma alheia. Encolhe o teu beijo, que ele não carrega consigo essa capacidade de invadir almas. Quanto à tua indiferença, gostaria de te alertar que se ela realmente existisse tu jamais estarias a prestar atenção à minha pequenez que, de tão pequena e mínima, não consegue acomodar a tua tão gigantesca indiferença, falsa indiferença. Desta vez notei bem nos saltos altos, moça, já aprendi a reconhecer a fonte da tua instabilidade, tua indiferença. Se não sabes lidar com a tua própria indiferença, moça, não uses saltos altos.

Um brinde à tua certeza de saber que não me és, nem por um segundo, à tua autenticidade, um brinde aos encontros carregados de desencontros, um brinde ao teu langor, à tua elegância, à tua necessidade de reinar sobre as cobras não corais. Um brinde a mais um belo espetáculo e, como dizem as pessoas que fazem parte da classe artística, merda pra você -- mas não a jogues no ventilador, moça.