1.8.09

Outra pausa

Profissão de jornalista não é fácil. O primeiro período da faculdade de Comunicação inicia o processo de lapidação do romantismo do cargo de jornalista. O mercado de trabalho não ajuda e, quando resolve abrir as portas, o salário não é lá o dos melhores. Além do pouco reconhecimento da profissão, entraves com o STJ, custo alto em cursos de extensão etc etc. No final das contas, ou do curso, separa-se o joio do trigo: de um lado sonhadores persistentes, talvez embalados pelo amor ao jornalismo acima de tudo, pela vontade de ser útil dentro da sociedade, alimentam a alma- nem tanto a barriga- de desejos seus e dos outros, necessidades urgentes, que gritam, mas poucos escutam. Do outro, desiludidos e frustrados em busca de qualquer emprego que pague as contas ao final do mês.

Hoje, me deparei com o primeiro entrave de quem está disposta a levar a sério o jornalismo e mais, fazer da mídia um instrumento de divulgação de necessidades alheias, colocar as palavras em ação com o propósito de combater a miséria. Fui apurar fotos de bairros de Peixinhos (Olinda, Pernambuco), a comunidade é considerada perigosíssima, para entrarmos no bairro foi preciso andar com uma pessoa da comunidade, além de manter contato com o líder comunitário. O propósito da visita era registrar algo de bom dos municípios, já que toda a miséria havia sido registrada para o estudo da região, foi bastante difícil encontrar no meio de lixo, pobreza e condições inóspitas de saúde e moradia algum lugar digno para seres humanos habitarem. Andávamos e a “paisagem” era esgoto a céu aberto, palafitas, buracos nas ruas e muita, muita sujeira. Por incrível que pareça, conseguimos capturar crianças sorrindo.

É um choque tremendo de realidade sair de um bairro urbanizado, saneado, considerado nobre e chegar a lugares tão inóspitos, com pessoas gritando por ajuda. Chega a doer. Eu, classe média, com casa própria, comida na mesa abundante, estudando em faculdade particular, com direito a lazer, roupas caras estava do lado de um menino, praticamente da minha idade, morando debaixo do rio, em uma palafita, rezando, todos os dias de inverno, para que o rio poluído não transborde e ponha em risco a vida de seus tantos filhos. Pode soar piegas minhas palavras, mas é a realidade, aprendi isso em alguns meses de trabalho.

Deixando as diferenças imensas para trás, ao voltarmos para o carro e nos deparamos com duas pessoas, da própria comunidade, armadas, nos ameaçando de morte por causa de duas câmeras Ele nos seguiu durante o caminho de volta, entrou em casa e pegou um revólver com bastante munição. Estava claro ali que não estávamos filmando qualquer tipo de irregularidade possível naquele lugar, apenas queríamos registros fotográficos focados em outro ângulo, na possível existência de vida digna. Em nenhum momento houve qualquer tipo de desrespeito da nossa parte, sabemos lidar com as diferenças e nos sensibilizar com as mesmas. Terminado o assalto e todos, graças a Deus, tensos e salvos, voltamos para o escritório com uma revolta inexplicável. Não pela perda material, mas por uns e outros, que terminam estragando todo um trabalho de cooperação, de tentativa de mudança, pois estávamos ali representando uma ONG (AVSI), trabalhando em prol do desenvolvimento, no auxílio do diálogo com o falho Poder Público.

Assustou e me impressionou o valor mínimo de uma vida ali dentro. Caso houvéssemos reagido ou feito qualquer movimento que não fosse de seu agrado, ele não teria evitado atirar no carro, em nós, em qualquer pessoa que estivesse pela frente. A falta de oportunidade aliada a uma mínima expectativa de vida gera violência, todos nós sabemos. Sabíamos que ali era “normal” esse tipo de atitude, fomos avisados pela moradora, alertados por pessoas com desconfiança nas ruas devido à quantidade de promessas falsas para uma possível solução, caras estafadas de pobreza, raiva e, pior, acomodação. Das tantas comunidades que tive a oportunidade de visitar são raras as pessoas que buscam qualquer tipo de saída - além da criminalidade e do tráfico de drogas, acomodam-se a um assistencialismo barato oferecido pelo Governo ou por deputados/vereadores/prefeitos em campanhas eleitorais. Meter o pé na lama e olhar de perto a degradação do Rio Beberibe,levando não somente o lixo como os habitantes das redondezas é para jornalistas, assistentes sociais, psicólogos , qualquer outra profissão, menos a de um político.

Não culpo o assaltante, muito menos me intimido, estava fazendo o meu trabalho de uma forma séria. Desde que entrei na faculdade, sabia que não seria fácil, meus sonhos e objetivos profissionais envolvem muitas pessoas e, por isso e por muito mais, minha vontade de continuar, de averiguar e, principalmente, mudar continua. O amor ao jornalismo e seus efeitos dentro de uma sociedade compensa, engrandece e não há faculdade nenhuma que acabe com isso. A luta continua e mundo que me espere.

Quem quiser saber mais sobre a AVSI Olinda: www.projetocomunidadeviva.blogspot.com

12 comentários:

Eu, que não sou Chico disse...

Em alguns momentos da vida, tudo parece se resumir a um grão e areia. A vida torna-se tão pouco, que até assusta. Tenho admiração por um profissional que ao passar por tudo isso, ainda consiga ter uma postura assistencialista e racional, para escrever um depoimento como esse. Parabéns menina, fico muito feliz de ter saído dessa bem.
Texto ótimo!
Bjo

Anônimo disse...

lindo saber que na nova geração de jornalistas ainda existe a preocupação com questões tão abandonadas.

entre mortos e feridos salvaram-se todos :*

Renata Evellyn disse...

Quando nos deparamos com uma realidade tão diferente da nossa o choque é inevitável. Estamos condicionados a esperar que a miséria esteja longe de nossas vidas, quando na realidade ela é nossa vizinha. Fico feliz que teve a oportunidade de ver tudo isso e retirar algo bom disso tudo.

Vanessa Cristina disse...

E o Ministro Gilmar Mendes ainda faz a infeliz comparação entre um jornalista e um cozinheiro.

Sonhos não se fritam no óleo.


Beijo, moça.
:*

Analista de sua própria vida disse...

Gostei do seu texto ele é maduro e mostra - sem o menor rodeio - a que ele veio.
Gotei de seu blog, você gostaria de uma parceria de links? O meu é: http://aspalavrasqueoventoleva.blogspot.com

Unknown disse...

não é fácil sair da nossa de conforto; no entanto, devia ser lei, disciplina obrigatória nos colegiais do Brasil.
boa sorte com a profissão!

Marguerita disse...

Admiro este olhar sobre as coisas de quem não só sabe como sente na pele!

Com certeza o jornalismo faz parte de ti!

Go!

Bj

Aline Romero disse...

Eu, que sonho em ser jornalista por motivos quase iguais aos seus, me identifiquei demais com o teu texto. É isso que eu quero pra mim. Com dificuldades e tudo!
Belo trabalho, Clara.

Eu, que não sou Chico disse...

Pode sim, respondi pro seu email. Depois me toquei que talvez vc não leia com frequencia lá.
Bjo

Renata Evellyn disse...

Doce Clara, tem um presente p/ ti no meu blog. Beijos

Jaya Magalhães disse...

Eu sinto um orgulho besta, de você, assim. Sabe?

E já envelopei amor, pra te entregar.

Anônimo disse...

NUNCA DESSISTA DE SEUS SONHOS.
sEMPRE VALE A PENA LUTAR PELO QUE ACREDITAMOS. VÁ EM FRENTE!!!