10.4.08

Uma estrela caiu

Margarida era uma menina bonita para quem a via de fora e linda para quem via de dentro. Seus olhos pequenos estavam sempre voltados para um ponto fixo, nunca conseguiu “não pensar em nada”. Saltitava à procura de paixões, entregar-se por completo. Ela era uma revolução em pessoa, ou como diz o menino-que-faz-frevo, era uma semente de vulcão.
Até que um dia, Margarida achou a sua paixão: os microscópios. Passava horas focando e desfocando as imagens que passavam aos seus olhos. Achou uma bactéria (eu, você e até a outra pessoa aqui do lado não entenderia o prazer de focar-se em uma bactéria, para Margarida, traduzia-se a palavra: encantamento), não estou me referindo a uma colônia das mesmas e sim a uma unidade mínima da espécie.
Margarida se afeiçoou ao tal ser procarionte, viu crescer, alimentar-se, arranjou até um senhor bactério para dar início à procriação. Uma família foi criada (até esse ponto, acredito eu, você pode imaginar como os olhos descritos anteriormente brilhavam ao voltar-se para o microscópio), todos iguaiszinhos, nem um gen a mais e nem um gen a menos.
Noite e dia, dia e noite. .a menina e o aparelho eletrônico formaram um mundo. À medida que os dias e as bactérias se desenvolviam, Margarida voltava-se mais para o seu minúsculo campo visual. Não conseguiu acompanhar o ritmo quase exponencial do reproduzir bacteriano então escolheu um ou dois serzinhos de sua preferência. Outro assunto inexistia no cotidiano daquela mulher, aliás, será que existia uma mulher?
Fulano se separou de Cicrana, Beltrano teve um caso com a dona do vigésimo andar, Zezinho foi demitido e só Margarida não viu. O ano virou, o verão foi embora, as plantas de tanto berrar por água, saíram com as gargantas roucas, só Margarida não viu. Também não viu os bilhetes apaixonados do microscópio vizinho, também não viu os livros que se acumularam no birô do lado. Margarida não viu a vida passar. Mas, ela passou.

Coluna? Dor de cabeça? Abraço confortante? Não perca o foco!

As outras bactérias desprezadas empestaram todo o departamento, impossibilitando qualquer outro tipo de vida por ali.
Margarida? Ah! Você já sabe! Margarida não viu, nem sequer sentiu que estava sozinha.
Três anos depois, resolveu levantar o olhar - questão de segundos, claro- e morreu de infecção bacteriana.

15 comentários:

Filipe Garcia disse...

Oi Clara.

Que forma incrível de chamar a minha atenção! É um assunto desconfortável que todos vivem - quem não tem algo no qual se foca o tempo todo? Mas a gente não se permite pensar sobre isso, não queremos perder o foco.

A realidade de Margarida é nossa realidade. E por isso deixo aqui meus aplausos pela sua construção. Sua escrita é rica e mexe aqui dentro.

Beijos.

Keidy Lee disse...

Lindo texto,

Abraço.

Ana Cláudia Zumpano disse...

Clara,
adorei oque vc usou pra nos mostrar um defeito tão gritante... nunca conseguiu “não pensar em nada”, eu sou bem assim as vezes, tenho que frear forte. Lindo Clara, espero que as margaridas acordem logo, e aprendam a olhar p esse mundão lindo que a gente pode viver...
Bjos menina Clara... ;*

Araúja Kodomo disse...

Gostei imenso...
Quase sempre que nos afeiçoamos a alguma coisa, ela acaba por nos lixar a vida...
***

A Maya disse...

De forma ficcional, mas nem por isso menos real, puxaste minha orelha.

Muito bom!

Alessandra Castro disse...

Pobre Margarida, mal percebeu as coisas passarem ao seu redor, espero q sirva de lição o seu texto, as vezes nos preocupamos tanto tanto e eskecemos mesmo de viver.

Adorey seu blog, passarei aki diversas vezes. ;)

Anônimo disse...

Eu achei fantástica a metáfora que você criou. Tantas vezes eu sou Margarida...

Beijos.

nj.marabuto disse...

obstinar-se por bactérias e não pela cura de uma doença grave, por exemplo, pode ter sido o primeiro erro da vocacionada bióloga... certamente, é grave mesmo tomar o trabalho enquanto fim em si mesmo e não como meio, numa racionalidade alienante — com requintes de subterfúgio. e quantos de nós não fazemos isso? =[

te saiste bem com a ironia eim moça! bjos

Fernanda Papandrea disse...

nossa!
muito bom!
ótima forma de me fazer ter foco e viver!

obrigada por esse post ;)

Camilinha disse...

Eu vi muitos momentos pela janela da minha vida... passaram, passaram... quando desci na parada centuvinteoito a vontade que tinha era de sair correndo o caminho todo de volta para apanhá-los um a um e, realmente, vivê-los. Mas não dá, né?!

Subi no trem novamente, só que agora eu tenho meu dorso do lado de fora e a língua pendurada na boca...

beijos daqui...

Fernando Locke disse...

Palmas! Gosto de contos e de ficção! vc uniu os dois! Ficou Mto bom! foi concreto, teve unidade tenmática, cativou pelo igual (pode ser com quaqluer um) e pelo diferente (mas foi com uma tal Margarida). Teve moral, prendeu a atenção! além do mais, bem humorado euma forma de mostrar q quem só olha paraumponto, acaba perdendo o mundo de vista! garnde abraço!

Anônimo disse...

que lindo x)
adoro texto assim, com essas descrições, pequenezas e bonitezas que fogem ao clichê. aliás, tudo o que você escreve é bem único. :)

Narradora disse...

Clara,
Pobre Magarida, de tão focada perdeu a vida (rima pobre...rs).
Adorei o texto.
Tantas vezes isso acontece conosco, não ver a vida passar, igual a Carolina da música do Chico.
"Eu bem que avisei, vai acabar, de tudo lhe dei para aceitar/ Mil versos cantei pra lhe agradar, agora não sei como explicar/ Lá fora, amor, uma rosa morreu, uma festa acabou, nosso barco partiu/
Eu bem que mostrei a ela, o tempo passou na janela e só Carolina não viu."
Bjs.

Juliana Campos disse...

Não se pode fugir aos problemas, a vida passa e com ela nós passamos. Cabe a cada um escolher se quer vivê-la ou refugiar-se com as bactérias.

P.s:O texto tá muito lindo, de uma criatividade incrível!
Parabéns =)

Tata - A Moderninha disse...

Ola

Apesar de não comentar, não esqueci do seu pedacinho!!!

Rica!!!

As bacterias são lindas..Juro para vc!!!! já tive o "prazer" de descrubri-las e acredite são lindas rosas, esverdeadas, em colônias....

Eu fiz patologia clinica..(eca...rsrs)

Enfim, mais um texto gradioso cheio de emoção

beijokas