4.2.09

-Sabe quando você senta sozinha, só pra acender um cigarro, um incenso de jasmim e tomar um bom café? Eu tenho essas manias de parar e me rever por dentro, junto com jasmim, café e cigarro. No meio disso tudo, encontro uma coisa estranha, sem nome, aqui por dentro. Talvez seja um sorriso se formando - sim, por que veja bem, um sorriso não nasce assim do nada, ele se forma durante horas, dias, sai o que transborda, o que já está maduro- talvez seja um sorriso querendo ir embora, não sei.

- Eu tenho disso, às vezes. Um dia, durante a noite, quis chorar. Mas não havia por quê. Pensei numa cena triste de filme. Pensei na África. Chorei uma lágrima doída, forçada. E foi num olho só. Choro é tal qual um sorriso. Só mudam os sintomas, só muda a maneira de fixar os olhos. Mais café?


-Mais café. Sintomas, essa palavra é gostosa de falar, não sei bem o motivo. Enquanto tu falavas, pude te olhar bem nos olhos e perceber a tua poesia. Já reparou que as pessoas são versos? Livres ou não, mas versos. Me encanta isso, me faz cultivar sorrisos, colher choros, fixar os olhos. Acreditas nisso?

-
Sim. As pessoas nada mais são que palavras encarnadas. E buscam motivos para usá-las. Quem não as domina, vira escravo literário. Já viu aquela gente que anda com um bloquinho na bolsa? Que lê bula de remédio? Que se exaspera diante de um teclado de computador? Quando se está cheio delas, impossível é retê-las. Há estouro. Viram poesia.

-Engraçado, eu ando com um bloquinho na bolsa, leio bula de remédio e me exaspero diante de um teclado de computador, voas por aqui quando estou imersa em mim? Me sinto cheia de letras, estou-rando. Mas tem vezes que elas travam, ficam guardadinhas aqui dentro, parece que uma se segura na outra com medo de encarar o mundo lá fora, de voar alto demais. Aprendi, durante esse tempo, a cultivar pessoas-versos e palavras. Estão por lá, no jardim, és uma delas. Ah, preciso de outro cigarro, você se incomoda?

- Não gosto quando você fuma. Mas acho bonita a forma como você fala de mim, de jardins, de palavras. Agora entendo porque você falou de um sorriso contido. São palavras escondidas que vão fazendo cócegas, não é? E daí você lembra de um amor, de um afago, de um gesto singelo. Os lábios vão se abrindo. Lembrança de uma felicidade atual que ainda faz morada. Larga o cigarro. More em mim, agora.

-Você e essa sua coisa de achar solução, achar sossego, é lindo. Deixa só esse cigarro acabar, me deixa aproveitá-lo até a última cinza, o último trago. Daí eu moro em você, me jogo em você. Não me olha assim, já largo, já vou. Fica com esse sorriso, meio aberto, meio fechado, essas palavras se contorcendo dentro de ti para chegar até as minhas e rodopiar, esse brilho que sai dos teus olhos e se agarra ao meu. Pronto, o cigarro já foi, estou pronta para me adentrar, de alma, em você.

* Junto com Ele e um mundo cheio de sofimas.

13 comentários:

André disse...

É pra você que eu grito meu silêncio, e quando eu penso em você eu nunca tô sozinho.

Erica de Paula disse...

"Já viu aquela gente que anda com um bloquinho na bolsa? Que lê bula de remédio? Que se exaspera diante de um teclado de computador? Quando se está cheio delas, impossível é retê-las. Há estouro. Viram poesia."

Clara, não é que essa sou eu?

Ah, amiga tua alma é linda demais!!

Bjs :)

Anônimo disse...

A entrega, acho, é o ato mais difícil e mais lindo que nós podemos fazer.
E, pra quem recebe, é uma grande responsabilidade.
Você e o Lipe fazem uma grande dupla! Parabéns.
Beijos.

Denise disse...

Que lugar mais delicioso de vir.

Quero vir mais vezes.

afagos

De

Rounds disse...

muito bem menina clara.

belo.

bj

disse...

Às vezes demora tanto pro riso vir, o sentimento precisa amadurecer bastante. Mas às vezes acho que chorar precisa de mas envolvimento, por mais que os sentimentos não precisem estar maduros. Normalmente não estão.

Bjo

Bernardo Sampaio disse...

lindo texto teu esse,
uma conversa discreta
e despretenciosa que,
na minha cabeça,
transcorria uma madrigada
bonita.

beijos.

Filipe Garcia disse...

eu digo: é um prazer misturar minhas letras nas suas. Você, Clara, é poesia que completa.

Beijo.

Carla P.S. disse...

Aceita um café?
Adorei aqui, charmoso, acomodante, e justamente do jeitinho que eu gosto.

Abraão Vitoriano disse...

tem uma “coisinha” pra você no meu blog... corre lá... abraços!

Unknown disse...

que graça! e eu também fiquei em estado de graça vindo por aqui! adorei!

Unknown disse...

Gostei. Linkei.

Narradora disse...

Lindo! Deixou a minha segunda-feira encantada.
Bjs